Lembro-me que era noite quente, eu e minha mãe vínhamos de ônibus do outro lado da cidade. Eram dois ônibus, as mesmas duas linhas que até hoje fazem o mesmo percurso. Fomos assistir um espetáculo de teatro num lugar que, pra mim, ainda era uma descoberta. Num ranchinho modesto com silêncio da mata. Nós alí cumprindo um dever cultural, um prestígio nato, orgulhosos de nossa longa viagem e felizes por nada. Em poucos momentos da vida temos a honra de dizer: - Se eu quizesse estar em algum lugar hoje, este lugar é aqui! E naquele dia tínhamos esta honraria estampada nos dentes. Naquele dia reservei ingressos e soube que o teatro estava lotado. Lotado seguinificava 75 lugares, honrosos 75 lugares em três distintas arquibancadas rosas e tudo dentro de uma espécie de casa de mantimentos; estas casas onde, num tempo não muito distante, se guardava as selas de cavalos, enchadas, com seus 5 x 8, 6 x 6, algo assim, não mais que isto.
Entramos, platéia sedenta, honrada, talvez a mesma platéia que voltaria as filas de espera durante anos seguidos. Na época eu não conhecia o ator, não entendia a linguagem, minha única referência, talvez, fosse a intuição de dizer; gosto disso! Se me perguntar hoje a sequencia do espetáculo, tenho certeza que te dou ela inteirinha. Confusa, claro, estranha, meio sem nexo, mas garanto a fonte, o esqueleto e a essencia do que vi, Dez justos anos depois. Depois daquele dia eu viria a ouvir Clown milhares de vezes, estaria condenado em eternas discussões de distinções de Clown e Palhaço, que, confesso, ainda hoje, não entender bem! Se é que ela existe óbviu.
Terminando o espetáculo o palhaço tira o nariz e homenageia outro palhaço italiano, de quem tudo aprendeu. Eu e minha mãe, emocionados de tanto rir - há anos não sentia aquela sensação, como um estado de choro e tristeza por estar muito feliz - voltamos para casa rindo, voltamos com uma vontade de dizer a todos, olhem o que eu vi! Olhem o que aconteceu! Olhem o que eu, com este dinheiro, comprei ontem! Infelizmente teatro tem dessas coisas, você não consegue chegar em casa e dizer; olhem o que comprei ontem! Se você compra um livro, um quadro, um cd, ou qualquer outra coisas, você chega em casa e diz: - Olhem o que comprei! E mostra. As pessoas acreditam porque vêem. Com teatro não. E nessa semana aprendi isso e viria anos e anos depois sofrer com esta descoberta.
Eu já me encaminhara pro teatro a muito tempo, mesmo antes disso tudo, mas nessa época iniciei uma estrada que até hoje é motivo de muito trabalho e prazer. Dividindo palco agora - isso já tem 4 anos - com dois palhaços argentinos, um casal ímpar nesta selva tetral. Tive, assim, a oportunidade de iniciar um espetáculo também de palhaço, e mais, dirigido também por um italiano. E num desses encontros que o circular movimento da vida nos proporciona fomos todos juntos para um palco na cidade maravilhosa e lá, da coxia, eu esperava meu momento de entrar, esperava o tempo do nosso roteiro, nervoso e concentrado. Do outro lado do palco, não pra minha surpresa, mas para meus cegos olhos de até então, entra Teotônio; o palhaço da noite quente no ranchinho longe de casa. É engraçado nossa memória! Precisa ver o óbviu para descobrir o improvável. Dez justos anos depois, iniciante amador, um aprendiz inconstante, estava a ver aquele palhaço magrela. E a sequência confusa, mas honesta, do espetáculo que assistira, me veio a cabeça, inteira e a sensação daquela descoberta primeira também; O ônibus, o cheiro da mata, as 75 fieis pessoas...etc!
Bem! Estava eu, pronto pra entrar em cena, com os olhos marejando em frangalhos, mergulhado naquela imensidão, na minha honestíssima concentração assistindo Ricardo Puccetti ajudando Leris Colombaioni - filho do mestre italiano homenagiado a dez anos atrás; Hoje o meu mestre, nosso diretor. Abel, meu companheiro de cena, me cutucá e diz: - Tudo pronto? Acordo e começo a me tatear procurando algo que faltasse no figurino, como o fumante que nunca sabe em que bolso está o isqueiro, patético.
Finalizamos a noite de gala em grande estilo, uma noite em homenagem a Nani Colombaioni, o mestre de Ricardo Puccetti. Dentro de mim uma enchorrada de sentimento, olhar catatônico para não perder nada, um curioso excitado, como estes cachorrinhos de madame que pula, late e gasta energia pra nada, patético.
Ricardo Puccetti é modestíssimo, naturalmente tímido e tem, pra nossa felicidade, uma língua afiada e excelência no trato da linguagem do palhaço, na postura de artista, na disciplina diária de seu treinamento, no olhar cirúrgico quando se fala em comicidade, em teatro. É sem dúvida uma referência para todos nós. É a bússola, o norte firme.
Leris, durante os ensaios tenta me explicar o "raciocínio do palhaço", o que se deve ter no fazer, no pensar, no agir, a dignidade e respeito com o público, sua independência artística, etc. Eu, tentando resumir a conversa e demonstrando completo entendimento, digo: - Como Ricardo! Leris levanta os braços, num gesto de não ter o que dizer, e como um autentico italiano debruça as palmas das mãos no meu pescoço com dois pesados, mas carinhosos tapas, típico da máfica e fecha: - Bravo Darko, o capito!